Como tornar-se um Mestre no Xadrez

COMO TORNAR-SE UM MESTRE

O GM Spraggett nos dá as dicas a seguir para conseguir o fim desejado por todos os aficionados: se tornar-se um mestre de xadrez.

Pode todo o mundo se tornar-se um mestre?

Sim, inclusive os iniciantes mais despreparados o têm conseguido. O segredo é afrontar as prioridades de cada um. A primeira grande pergunta que alguém deve fazer se deseja ser um mestre não é “Quanto tempo tardarei?” senão “por quê quero sê-lo?” Se não pode responder à pergunta de forma convincente, é melhor que abandone o intento. Porém se pode, e tem boas razões para tentar consegui-lo, então vá em frente!

No processo de se tornar um mestre importa mais sua força de vontade que o seu nível de jogo. Motivação, vontade, disciplina, perseverança, a isto me refiro. Tornar-se um mestre tem que ser importante para você; de outra maneira, estará perdendo tempo. O caminho à maestria tem muitas curvas e desvios, e se não tem vontade de trabalhar duro, não o conseguirá. Ser capaz de trabalhar duro é mais importante que o talento.

Disse que é difícil? Claro que o é. A segunda grande pergunta: “Quanto tempo?” tem uma única resposta honesta: você mesmo saberá quando tenha atingido a meta.

Deve economizar tempo.

Organize-se! Leve um registro das suas tarefas. Somente toma uns minutos escrever umas poucas palavras sobre o que tem feito numa tarde. Depois de uns poucos meses poderá olhar para trás e ver o que está funcionando e o que não. Steinitz disse que é melhor trabalhar uma hora ao dia durante seis dias, que seis horas em um só dia e nada nos outros cinco. Tinha razão. Criar um plano de estudo e treinamento e tentar segui-lo. Sugiro sessões de treinamento não inferiores a duas horas, e de preferência quando não esteja cansado. Concentrar-se é difícil quando não se tem muita energia. Tenta estudar num local tranquilo, sem a televisão. Ouvir música suave é uma boa ideia, porém nada de ruído: o cérebro assimilará muito mais quando presta atenção a isto.

Evite a armadilha do excesso de informação.

Você se tornará um mestre melhorando gradualmente o seu jogo. Vai de nível em nível, e cada nível pode requerer um pouco mais de informação, e inclusive um tipo ligeiramente diferente de informação. Muito jogadores ficam estagnados num certo nível e tem dificuldades para avançar porque tem informação demais nas suas cabeças. Estão confusos. Lembre-se que no xadrez o importante é saber aplicar o que se sabe, não absorver informação a mais. Lasker certa vez escreveu que havia jogado xadrez toda sua vida, e que durante os 25 últimos anos havia tentado esquecer a maior parte da informação adquirida. Sabia que o prejudicava mais que ajudava. (Como demonstrarei, o importante é adquirir técnicas e métodos). Com isto em mente, você deve limitar o número de livros que tem até que se torne um mestre. Não necessita muitos: uns vinte são suficientes. As revistas estão bem. Em relação aos programas, mencionarei os de jogo mais para frente, porém ninguém necessita de milhões de partidas. Recordo uma refeição com Lombardy e vários aficionados em Nova Iorque. Um dos aficionados disse que tinha mais de um milhão de partidas em seu ordenador, e Lombardy olhou para ele e lhe perguntou em quantas delas havia trabalhado. Você de limitar a quantidade de aberturas que joga. Somente necessita uma boa defesa contra e4, uma contra d4 e uma contra o resto. Com as brancas, limite-se a uma abertura. Caso tenha tempo para aprender mais, faça-o, mas lembre-se que o xadrez é um jogo de aplicação, não de absorção. Somente se pode fazer um movimento por vez, então faça as coisas da forma mais simples.

Evoluir

Consideremos a evolução para o principiante total: não sabe nada em absoluto. Não gosto da analogia do livro em branco e, prefiro a analogia do que está perdido: o principiante necessita ser direcionado. A evolução do principiante irá deixando lacunas na sua formação se não o faz de maneira correta. A evolução ao nível de mestre consiste em dois passos básicos. O primeiro é alcançar uma compreensão mínima básica do jogo, caracterizada por uma deliberada falta de informação enxadrística específica, e o segundo é chegar ao nível de mestre por meio da aquisição de técnicas e métodos mediante a absorção de quantidades apropriadas de informação. O primeiro passo é muito parecido a aprender a montar numa bicicleta: se evolui mais praticando que não fazer. No xadrez, isto significa manter as coisas simples: aprender a não deixar o rei exposto, atentar às ameaças imediatas do rival, não deixar suas peças no ar, desenvolvimento rápido, não criar debilidades. Somente devem tocar-se os conceitos mais intuitivos sobre a importância do centro e a tática elementar. Nada de livros. Ou, ao menos, não livros formais. O principiante deve perceber por que perde as partidas. Tem que ser consciente de seus hábitos ruins que contribuem para a derrota.. Necessita desenvolver uma ideia intuitiva do xadrez. A maioria dos livros para iniciantes mantêm uma estratégia equivocada: faz isto, não faz isto, tem cuidado disto, e todo este tipo de conselhos tipo Fred Reinfeld. Muitas regras são essas. Trata-se de uma aproximação equivocada: essas regras substituem a compreensão. Um ou dois livros que ofereçam partidas básicas com explicações simples é algo estupendo. Um dos que recomendo é “Xadrez lógico” de Irving Chernev. Explica cada movimento da forma mais simples e intuitiva. Sem variantes, nada de estratégia. A informação tem que se manter ao mínimo porque queremos aprender, não maneiras de ganhar, senão como evitar fazer coisas estúpidas mediante um enfoque intuitivo. No caminho em direção ao aperfeiçoamento este nível básico mínimo de compreensão é muito importante. O principiante necessita jogar contra jogadores mais fortes que para que obtenha informação imediata dos seus erros. Não serve para nada jogar contra gente fraca, porque desta maneira os erros não serão percebidos. Uma questão sobre a qual devo por muita ênfase é que o principiante deve desenvolver o hábito de prestar atenção às ameaças do seu oponente. Deve fixar este costume até que se converta numa parte dele, verificar o que está sendo ameaçado antes de fazer o lance. Se não sabe o que está sendo ameaçado, não importa quanta informação tenha, quanta técnica haja adquirido; perderá sempre. Da mesma forma que aprendemos a olhar para ambos os lados da rua antes de cruzá-la, e o fazemos depois de maneira inconsciente, assim o principiante deve perguntar-se antes de fazer o lance: quais são as ameaças imediatas do seu adversário.

Outro ponto dentro deste primeiro passo que estamos tratando: é difícil encontrar um rival que seja mais forte que você e de quem possa aprender no post-mortem. Isto está claro. Porém é importante compreender que a quantidade de tempo que permanece neste primeiro nível, está relacionado com a quantidade de tempo que não perca jogando com adversários fracos. Creio firmemente que os velhos mestres de 500 anos passados (Ruy López, Damiano) sabiam o que diziam quando aconselhavam não jogar com oponentes piores do que nos.

A segunda fase (uma vez que o jogador tem adquirido certo tipo de consciência enxadrística) é muito diferente da primeira porque se começa a melhorar o jogo mediante a aquisição de técnicas e métodos (que contrasta com aprender o que não fazer: agora aprende o que fazer). Esta é a principal característica do processo de aprendizado neste item, e continua até chegar ao nível de mestre. Aqui é importante a informação enxadrística específica. Agora não é crítico o jogar contra oponentes mais fortes (ainda que ajude). Nesta fase, se desenvolve a força do jogador. Pode se descrever como algo que consiste em três elementos:

  1. Habilidade natural;
  2. Técnicas e métodos adquiridos;
  3. Informação e conhecimentos.

Nesta fase o jogador deve participar de torneios. Este passo dura mais tempo que o anterior.

Em que consiste o nível de mestre?

Não quero tratar o tema do Elo e outros sistemas matemáticos. Prefiro falar de ideias. Um mestre é um jogador muito competente que não somente tem adquirido a compreensão de que uma partida é uma serie de minipartidas (abertura, meio-jogo e final), cada uma com as suas próprias características, senão também a habilidade de construir a sua partida a partir destes elementos. Dito de outra forma, o mestre não somente pode reduzir a partida a seus elementos, senão que pode usá-los e juntá-los numa partida completa. O mestre tem um alto nível de habilidade técnica, junto com uma grande compreensão do jogo.

Controle do tabuleiro e maestria

Sempre me têm surpreendido os poucos livros escritos que explicam a importância do tabuleiro em si mesmo. É muito mais importante que a mesa onde se joga. Conhecer as suas propriedades é muito importante. Os livros ocupam-se em demasia das peças, sem perceber o que se perde ao não fazer um estudo das relações do tabuleiro com cada peça em separado. Lasker escreveu que muitos dos erros de um jogador seriam evitados se compreendesse melhor o tabuleiro. Muitos jogadores têm dificuldades para visualizar um tabuleiro. Pode se lhes pedir fechar os olhos e perguntar-lhes sobre as casas (de qual cor são), sobre as diagonais, fileiras, etc. Minha experiência como treinador é que muitos têm dificuldades em fazer tal coisa. Porém o tema é importante devido à maneira como funciona o cérebro. O processo de pensamento em xadrez implica no uso dos olhos igual que o olho da mente. O olho de nossa mente vê o tabuleiro de maneira diferente, como se não pudesse visualizar o tabuleiro inteiro. O decompõe em partes, e cada parte está relacionada geometricamente com as outras. Se não temos compreendido conscientemente a geometria do tabuleiro e suas relações com dada peça, então o olho de nossa mente (nossa maneira de imaginarmos o tabuleiro) não avaliará o tabuleiro completo, e por tanto, podem se passar por alto alguns temas táticos.

Por exemplo, ouvimos muitas histórias sobre como se perdem algumas partidas: o haviam previsto tudo, e logo perceberam que a peça que queriam movimentar a tal casa não era possível (seria uma jogada ilegal).

Nos anos 80 apareceu uma geração de jogadores soviéticos que se destacavam por olhar ao vazio, não ao tabuleiro, enquanto pensavam. Recordo a primeira vez que joguei com Shirov. Era o ano 90, em Paris, e fui emparceirado contra este relativamente desconhecido jovem letão. Joguei de maneira normal, e fiquei surpreendido quando percebi que olhava o tabuleiro somente de vez em quando, e que a maior parte do tempo olhava no vazio. Pensei que lhe acontecia algo. Pensei que não teria problema em ganhar-lhe. Porém impressionou-me tudo o que viu durante a partida. Combinava a visão normal com o pensamento às cegas, e os resultados eram impressionantes. Hoje em dia segue empregando esta técnica. Outros que o fazem são Ivanchuk e Gelfand. É uma técnica desenvolvida pelos treinadores soviéticos. Atualmente, Anand é o expoente máximo desta escola.

Há muitas coisas que você vê quando fecha os olhos, e que não vê ao tê-los abertos. Sugiro alguns exercícios para melhorar esta consciência do tabuleiro. Comece com um tabuleiro vazio. Põe um cavalo em a1. Sabia que levá-lo a b2 custa tanto tempo como levá-lo à oitava fileira? Quatro lances! Isto certamente não é intuitivo, porque tem a ver com as propriedades do tabuleiro e do cavalo. Depois experimente exercícios com combinações de peças, por exemplo dama e rei ou dama e bispo. Percebe que a dama não pode capturar uma peça num tabuleiro vazio, porem sim a um cavalo. Assim percebemos a importância do ataque duplo para capturar uma torre ou um bispo. Isto nos leva a insistir em que há de esforçar-se em desenvolver exercícios para melhorar o controle do tabuleiro. Pratique um pouco cada semana. Prove fechar os olhos e perceber o que vê. Faça-o durante cinco minutos e logo abra os olhos e olhe o tabuleiro. Vê diferenças? Deveria vê-las. Ganhará muito combinando as duas visões (com os olhos e com a mente).

O quê mais pode me ajudar a melhorar o meu jogo?

Deve apreciar a importância de buscar contrajogo em qualquer tipo de posição. Tenho lido virtualmente todos os clássicos da táctica e estratégia, das teorias de como jogar xadrez (Seteinitz, Lasker, Nimzowitch) e o valor do jogo posicional, e tenho que estar de acordo com o GM Mihail Suba quando disse que todos esses grandes jogadores e professores esqueceram uma coisa importante: o xadrez é um jogo dinâmico. Se a tua posição é sólida, porém passiva, o resultado será que mais cedo ou mais tarde você perderá. Lasker ensinava que não há razão para perder se você tem uma boa posição, se não comete erros desnecessários. Porém quando ensinava isto ao jogador médio de clube, este tinha pouca técnica. Hoje em dia, a técnica tem chegado a tal ponto de desenvolvimento que todos os jogadores de clube têm conhecimentos das técnicas existentes aplicáveis a muitos tipos de posições. Deixar que o chão se afunde é uma das principais causas de morte no xadrez. Pela minha própria experiência, apoio as observações de Suba. Uma boa posição, porém passiva, é um bom ponto de partida para encontrar razões para perder uma partida. Nunca verá a Kasparov em tal tipo de boas porem passivas posições. Ele prefere uma posição inferior com algo de contrajogo. De fato, estudar as partidas de Kasparov é uma boa lição sobre a importância do contrajogo. Não estaria longe da verdade se afirmasse que a única razão pela qual ganhou a Karpov foi de que este subestimava a importância de que cada posição tem algum elemento de contrajogo. Nos longos matches que jogaram aparece uma e outra vez a mesma história: Karpov intentando que seu estilo sólido lhe dê uma ligeira vantagem para ganhar frente a Kasparov no estilo “sou feliz numa posição inferior, se tem algo de veneno”. Quem ganhou é já história. Deve evitar as posições passivas e sólidas. Pense dinamicamente. Deve estar preparado para jogar em posições inferiores com oportunidades de contrajogo. Não deixe que o teu rival te arrase tecnicamente. Se você pode conseguir “Xadrez dinâmico” de Suba, compre dois exemplares.

O quê é um momento crítico em xadrez?

Este é um conceito pouco estudado na literatura enxadrística, porém esta convertendo-se em uma das ideias mais importantes no xadrez moderno. Uma teoria que está ganhando credibilidade é o conceito de que ainda que se precise de um processo de decisões para cada movimento, uma partida se decide pela qualidade das decisões em certos pontos da partida. A isto se referem os momentos críticos. Uma partida pode ter dois ou três de tais momentos. O difícil é reconhecer quando chega um destes momentos, e não tanto tomar a decisão correta.

Os momentos críticos são posições em que a decisão que tome afetará a partida futuramente e influirá em muitos movimentos depois. Por exemplo, quando define a conformação de sua estrutura de peões ou a troca de uma peça importante. A maior parte das decisões não implicam esta responsabilidade. Tomar uma decisão equivocada em um destes momentos críticos pode leva-lo a perder a partida, de modo que não poderá reparar o dano causado.

Dado o avanço da técnica em xadrez e sua incorporação ao arsenal do jogador de clube, esperamos que nossa noção do xadrez mude. Muitos concebem o xadrez como um jogo onde o momento em que toma as decisões corretas determina o resultado da partida. A chamada “teoria de Dorfman” baseia-se no reconhecimento dos momentos críticos. Recomendo-lhe que procure livros sobre os momentos críticos. É um conceito que lhe fará ganhar muitos pontos.

Últimos conselhos.

Não gastes seu tempo durante a partida, seja prático. No xadrez, o importante é aplicar o que sabe e fazê-lo sem preocupar-se com o resultado da partida. Perder não é a pior coisa que lhe pode acontecer. Caso veja um bom lance, uma boa ideia faça-o. Não gaste tempo intentando calcular tudo. Duas horas não é muito tempo. Os perfeccionistas morrem jovens no xadrez. É também importante que durante uma partida não esteja aprendendo, senão aplicando coisas que já sabe. Aprende-se casa, em paz e segurança. Outra questão importante é o tema dos pontos mortos no progresso enxadrístico. Caso sofra um deles, não penses em deixar o xadrez. Todos os esportistas os sofrem às vezes. Minha própria experiência me diz que ao longo do tempo o fazem mais forte.

Últimas palavras sobre o problema da falta de tempo. É algo que não acontece com os melhores jogadores. É difícil dar um conselho para evitá-lo. Dizer “mova mais depressa” pode levar a cometer erros. O que sugiro é que o jogador aprenda a tratar com o problema encontrando tempo de alguma forma: mover mais depressa na abertura, pensar durante o tempo de reflexão do oponente, etc. Alguns jogadores têm conseguido evitá-los e outros têm tido que aprender a conviver com a falta de tempo. Isto é tudo, amigos.

 

Tradução independente.

Artigo escrito por:  Kevin Spraggett, GM canadense que reside habitualmente em Portugal, é um veterano profissional dos tabuleiros e comparte conosco as suas experiências e impressões sobre temas interessantes para todos os enxadristas.

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