O Estado é racista, mas se falo isso é mimimi….

 

QUINTA –FEIRA, 13 DE SETEMBRO DE 2018                                                         FOLHA DE S.PAULO

 

“O Estado é racista, mas se falo isso é mimimi” diz advogada

Valéria foi algemada por policiais durante audiência judicial em Duque de Caxias

A advogada Valéria dos Santos, 48, em Duque de Caxias

MINHA HISTÓRIA

VALÉRIA DOS SANTOS

SÃO PAULO. A advogada Valéria Lucia dos Santos, 48, foi algemada por policiais na última segunda-feira (10) durante uma audiência em Duque de Caxias, no estado do Rio. Valéria e a juíza leiga discutiram, porque a advogada exigia ter acesso à peça da defesa. A juíza negou o pedido e chamou os policiais.

Pessoas na sala gravaram vídeos, mas não é possível ver todos os momentos da discussão. Para a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), Valéria estava “absolutamente correta” e o ato foi uma grave violação. O Tribunal de Justiça do Rio disse, em nota, que a juíza leiga pediu a presença de policiais “para conter uma advogada que não havia acatado orientações da magistrada”.

Valéria afirma que sofre com preconceito no trabalho e não se sente representada no Judiciário. Ela evita, entretanto, associar seu caso ao racismo.

A OAB-RJ vai entrar com representação contra os policiais e a juíza. A pedido da ordem, a audiência foi anulada e remarcada para o dia 18, quando será presidida por um juiz togado – o juiz leigo é um advogado que auxilia a Justiça em juizados especiais, mas a decisão final é de um togado.

A seguir, o depoimento de Valéria à Folha.

A ficha do racismo só caiu quando eu estava no chão, algemada. Os policiais me pegaram cada um por um braço na audiência e me arrastaram até o corredor. Não fui violenta com ninguém, só não me movi. Quando chegou do lado de fora da sala, me deram uma rasteira e eu cai sentada. Depois colocaram as algemas.

Nesse momento chegou o delegado da OAB. Ele foi muito firme: “Tira a algema dela agora!.” Os policiais obedeceram na hora. Aí você pensa: Como é a formação da nossa sociedade? Tem o senhor de engenho, a senhorinha, o capitão do mato. E quem estava no chão algemado? Eu.

O Estado é racista, entendeu? Mas se eu falo isso é mimimi, é vitimismo, por isso que não queria atrelar o caso a racismo, porque não quero ouvir essa resposta.

A minha luta ali era garantir meu direito de trabalhar. O racismo vai voltar a acontecer. Eu tento abstrair. Mas não dá para tirar meu ganha pão.

Naquele dia, a juíza leiga já tinha começado a audiência com uma pergunta não muito amigável. A minha cliente também é negra, e a juíza falou: “Vocês são irmãs?”. Eu fingi que não tinha ouvido.

Episódios assim acontecem quase todo dia, mas muitos colegas não falam sobre isso. Vou dar um exemplo simples. O direito tem várias formalidades. Tem uma cadeira para o advogado e uma para o cliente. Eu sento na cadeira do advogado, e os juízes me perguntam: “A senhora é o quê?”.

Ou eles falam para os outros advogados na sala que já os conhecem, mas eu preciso mostrar a carteira da OAB.

Não vou te enganar, eu entro nas audiências e não me sinto representada. A gente está em minoria na estrutura institucional do Judiciário.

A última vez que um desses episódios aconteceu, eu me acovardei, não quis arrumar tumulto. Naquele dia em Caxias, decidi que isso não ia se repetir. Eu tinha direito de ver a peça da defesa.

A juíza leiga negou. Eu saí da audiência para buscar o delegado da OAB, mas ele não estava na sala dele. Avisei à atendente. Quando voltei, a juíza tinha encerrado a audiência e me mandou esperar do lado de fora. Me recusei. Ela chamou a força policial.

Foi uma violação, por isso a audiência foi remarcada, com um juiz togado. Aquele ato ali, tanto meu, seu extrapolei, quanto o dela, foi anulado.

Na hora não chorei, mas por dentro eu chorava. Fiquei muito mal. Quando cheguei em casa, sozinha, desabei.

No dia seguinte tentei espairecer, fazer a minha corrida em Mesquita, na Baixada Fluminense, onde moro. Eu sempre fui atleta. Fiz atletismo e joguei basquete profissionalmente, muito antes do direito chegar na minha vida. Meu pai era caminhoneiro e minha mãe, costureira.

Na adolescência, fui convidada para jogar no Iguaçu Basquete Clube e no América. Aos 17, me mudei para Santa Catarina para ser atleta lá. Morava em uma república de jogadoras, treinava de manhã, ia para escola, estudava de tarde e treinava de novo.

Aos 24, voltei para o Rio para fazer faculdade. Comecei com fisioterapia, depois mudei para educação física na Universidade Federal Rural. Fui a primeira da família a entrar na faculdade.

Antes de concluir, recebi uma bolsa para jogar nos Estados Unidos, na Oral Roberts University, em Tulsa. Morei lá dez anos, casei com um americano e tive dois filhos. Quando fiquei grávida, perdi a bolsa. Fiz um curso técnico e me tornei auxiliar de enfermagem.

Em 2005, minha mãe foi diagnosticada com câncer de pulmão, e eu decidi voltar ao Brasil. Meu casamento já não estava bom, e nos divorciamos. As crianças vieram comigo, conheceram a avó. Retornei para a Baixada e segui com a enfermagem.

Aos poucos, o desejo de terminar a faculdade voltou, e escolhi cursar direito. Passei em uma universidade privada, com Prouni. Mas me angustiava com os meus filhos.

Infelizmente, com a implantação das UPPs na cidade do Rio, a Baixada ficou muito perigosa. Meus dois irmãos foram assassinados lá.

Eu olhava para os meus filhos dormindo e pensava: “meu Deus…” Eles faziam várias atividades, futebol, natação, judô, mas eu tinha aquele receio de mãe. Eu trabalhava muito, fazia faculdade. Pensava: “e se eu vacilar, não for tão atenta? Com o tráfico e aquela violência toda…”

Liguei para o meu ex-marido e chegamos a um acordo. Era melhor para os nossos filhos que eles voltassem para os EUA. Faz sete anos que não os vejo. Me formei em 2016, ganho pouco, cerca de R$ 1.500.

Foi uma decisão radical, mas acertada. Um está começando a faculdade de engenharia, e o outro, terminando o segundo grau. É difícil para mim falar disso [fica em silêncio, suspira]. Tenho saudade, mas vejo que eles estão evoluindo lá.

Como meus pais já faleceram e meus filhos estão fora, a minha referência aqui são os meus tios.

Foi com um deles que conversei depois do incidente no fórum. Porque as pessoas mais velhas, mesmo sem estudo, são muito sábias. Ele me disse: “Você é igual à sua mãe, não leva desaforo para casa”. E me deu o melhor conselho: “Não abaixa a cabeça, segue em frente”.

Depoimento a Marina Estarque